O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda fala em “nossa
gestão” e usa verbos no presente para mostrar ações do governo dele,
apresentadas com muitos números e misturadas a vídeos em que aparece cumprindo
tarefas da “vida comum”, nas redes sociais. O gesto, segundo especialistas, é
uma estratégia para reter um apoio que está cada dia menor e reforçar,
simbolicamente, a narrativa de “injustiçado”.
Fora do governo há mais de seis meses, Bolsonaro foi
declarado inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Paralelo
a isso, a aprovação da reforma tributária do governo de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) conta como derrota para o ex-governante. Apesar de ele insistir para
que o seu partido fosse contra a proposta, o texto passou na Câmara com um
placar folgado e o apoio de 20 deputados do PL.
No início da semana, por exemplo, Bolsonaro relembrou um decreto antigo de autoria dele que estabelece a obrigatoriedade do pregão eletrônico em cidades pequenas. “Essa iniciativa do Governo Bolsonaro amplia a concorrência nas licitações públicas e permite que empresas de todo o Brasil participem destes processos realizados pelos Municípios”, escreveu o ex-presidente. O decreto, contudo, é de setembro de 2019, primeiro ano do governo dele.
O ex-presidente frequentemente apresenta números que
demonstram ações da gestão dele e compara suas práticas com as do governo Lula.
Há alguns dias, por exemplo, ele usou a frase “governo Bolsonaro repassa R$ 722
milhões para estados e DF investirem em segurança pública”, no tempo presente.
O investimento foi feito em novembro de 2022, nos últimos dias de mandato.
A estratégia vem sendo utilizada com mais força em momentos
mais sensíveis para o ex-presidente, como a posse de Lula e a decisão do TSE
que o tornou inelegível. Nos últimos dias, a aprovação da reforma tributária na
Câmara foi o ponto-chave.
“Bolsonaro age com a intenção de atrair parte da opinião
pública a favor da sua causa, de que foi supostamente injustiçado e que as
forças do Judiciário tentam boicotá-lo. É também uma forma de criar uma
situação quase que utópica”, avaliou o cientista político Paulo Ramirez, doutor
pela PUC-SP e professor da ESPM. Ele também observa que ex-presidente reforça a
oposição da sua base a Lula.
Como mostrou a Coluna do Estadão, Bolsonaro ainda tem
influência no seu segmento político, mas vem em crescente desprestígio entre os
pares. A aprovação da reforma tributária expôs essa tendência: enquanto o
ex-presidente rivalizou com a proposta, Valdemar Costa Neto, presidente do PL,
buscou apaziguar os ânimos da base e defendeu a negociação de emendas com o
governo.
Para Ramirez, Bolsonaro virou “carta fora do baralho”. “Ele
tenta recuperar o apoio que está perdendo gradualmente. E também visa reforçar
sua influência para as eleições do próximo ano, pois ainda tem um capital
político muito forte”, disse o professor.
Vida ‘comum’
Outra linha frequente nas redes sociais de Bolsonaro são
publicações que mostram o ex-presidente cumprindo tarefas da vida ordinária,
cercado de demonstrações de apreço dos seus correligionários. Embora ele já
fizesse isso durante a gestão, hoje o ex-presidente aparece mais acessível, com
menos assessores e sem “cercadinhos”. O gesto reforça a narrativa de que ele é
um outsider do mundo político, embora tenha sido deputado por mais de 30 anos
antes de assumir a Presidência.
Uma situação que simboliza esse movimento foi a noite da
última sexta-feira, 14. Bolsonaro esteve em Goiânia, um dos seus redutos
eleitorais (nas eleições passadas, ele teve 58,7% dos votos do Goiás), para “ir
ao dentista e tomar caldo de cana”, de acordo com o que divulgou o deputado
bolsonarista Gustavo Gayer (PL-GO). Cercado por uma grande quantidade de
apoiadores, o ex-presidente agradeceu o carinho do público, que entoava “Lula,
ladrão, seu lugar é na prisão”, um dos motes da oposição ao governo.
Na última segunda-feira, 10, ele publicou um vídeo cortando
o cabelo em uma barbearia simples, no Distrito Federal. No vídeo, o
ex-presidente se deixa fotografar pelas pessoas, tira foto com crianças e está
acompanhado por apenas um assessor, que permanece distante e permite que as pessoas
se aproximem do político do PL.
No dia 8 de julho, Bolsonaro renovou sua carteira de
habilitação. Nas imagens divulgadas nas redes sociais, ele vai a uma clínica
para fazer os exames médicos em Taguatinga (DF), aparentando estar
desacompanhado. A pessoa que o filma grava o ex-presidente fazendo os testes de
visão, pressão e, depois, na saída, tirando fotos com crianças.
Especialistas não enxergam ilicitudes
A inelegibilidade de Bolsonaro, declarada pelo TSE por abuso
do poder político e dos meios de comunicação, levanta um alerta sobre possíveis
ilícitos que o ex-presidente poderia cometer ao usar dessa estratégia nas redes
sociais. Na visão dos especialistas ouvidos pelo Estadão, como Bolsonaro está
fora do cenário político institucional, a hipótese é remota.
A advogada Izabelle Paes, sócia do escritório Callado,
Petrin, Paes e Cezar, atua na área de Direito Eleitoral e avalia que Bolsonaro
tem agido dentro dos limites da liberdade de expressão. ”Mesmo diante dessa
limitação ao direito de ser votado, existe a liberdade de prosseguir divulgando
as realizações do seu mandato.”
Já para o cientista social Paulo Ramirez, uma eventual
responsabilização de Bolsonaro dependerá do teor daquilo que ele disser. “Na
medida em que ele mentir em público, isso pode levar as autoridades do Poder
Judiciário a reforçarem a incriminação em torno do ex-presidente.” Ele cita
como exemplo os encontros com Marcos do Val. Depois de negar qualquer encontro
entre os dois, na última quarta-feira, 12, Bolsonaro admitiu à Polícia Federal
que conversou com o senador, mas sem falar em golpe de estado.
De tempos em tempos, o ex-presidente “volta a usar da
estratégia de confundir a opinião pública. Quanto mais polêmicas ele cria, mais
acaba atraindo apoio, mesmo daqueles que estão hoje abandonando o barco do
bolsonarismo”, avalia Ramirez.
por Isabella Alonso Panho / ESTADÃO