Negação do racismo e estatísticas no Brasil exigem debate constante


Racismo. Um prática inaceitável que ainda é tão presente no dia a dia dos brasileiros. Como isso é possível? Com o objetivo de refletir sobre questões como essa e contribuir para o combate a todas as formas de discriminação, a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) lançou a campanha "Discriminação não cabe na UFSCar. Aprenda, ensine: violência é crime", no último dia 6 de outubro, quando recebeu o Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, que proferiu a Aula Magna "Vida universitária como oportunidade de encontro e formação da diversidade, contra a violência e pela equidade".
Racismo é um processo articulado de exclusão e segregação de um determinado grupo, comunidade ou pessoa com base em seu fenótipo racial e/ou sua origem cultural, conforme explica Simone de Oliveira Mestre, professora do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas (DTPP) da UFSCar: "O racismo é uma problemática complexa e pode ser identificado e classificado de diversas formas - como recreativo, institucional, individual, estrutural, cultural, religioso, entre outros".
Para ela, um dos principais desafios enfrentados no Brasil é a negação do racismo, que tem como base o mito da democracia racial, e o desconhecimento do papel da cultura afro-brasileira para a formação da sociedade. Segundo a docente, "o mito da democracia racial ainda alimenta no imaginário social uma crença equivocada de que vivemos em um País sem exclusão racial, ao passo que impulsionou um processo de negação e o apagamento da cultura negra em nossa história".
Os números apresentados pela professora escancaram como o racismo está presente na sociedade e em nosso cotidiano. Segundo dados da pesquisa Desigualdades Sociais por Cor e Raça do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019, as pessoas pretas e pardas representam 75,2% da camada mais pobre do País; 64,2% estão na fila do desemprego; e somente 29,9% estão ocupando cargos de destaques no campo profissional. "Esses números refletem a exclusão social de pessoas negras como um dos desdobramentos dos efeitos históricos do passado escravista brasileiro, que além das inúmeras violências, negou para essa população acesso a direitos básicos e possibilidades de desenvolvimento", analisa Simone Mestre.
Para Sarah Lís, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da UFSCar e servidora técnico-administrativa, a forma como a temática racial é tratada é inaceitável. "O passado racial do nosso País não foi tranquilo e estamos vendo as consequências ao longo do tempo até os dias de hoje, em que a violência e o racismo acontecem pelo viés psicológico, físico e emocional", explica.
Lís cita exemplos que mostram como essa violência está incrustada no dia a dia de todos os indivíduos, através de "notícias da mídia ou em espaços próximos de nós". Um exemplo é a "descrição absurda que orienta as ações do trabalho da polícia, em que para 'pessoa suspeita' é descrita a pessoa negra". Além disso, "as abordagens em estradas e vias públicas são registradas como mais agressivas - podendo chegar à morte", quando dirigidas a pessoas negras. Outro exemplo são os procedimentos de vigilância e segurança em estabelecimentos como lojas, supermercados, entre outros, que também "são focados mais para as pessoas negras e têm como orientação a agressão". Para a coordenadora do Neab/UFSCar, essas ações são "nitidamente permeadas pela classificação racial, em que as pessoas se julgam superiores ao sujeito negro a ponto de se acharem no direito de agredir, violar ou tirar a vida dessa outra pessoa".

Debate
Seja pela complexidade da questão, seja pelas inúmeras ocorrências diárias, o debate sobre o racismo é contínuo e necessário. "É chocante pensar como a base do pensamento racista foi construída no imaginário das pessoas, sendo tão enraizada a ponto de fazer com que as práticas racistas sejam realizadas e perpetuadas de forma tão comum", declara Lís. "E quando trazemos o debate oposto, antirracista, com uma educação e pensamento de consciência racial, as pessoas têm dificuldade de compreender; e, quando compreendem, sentem dificuldade de colocar em prática. Considero a desconstrução dessa estrutura do racismo muito complexa", completa.
A complexidade do racismo faz com que a própria comunidade negra pense e estude a melhor forma de lidar com o problema. Um exemplo são as designações - afrodescendente, afro-brasileiro, preto, negro, entre outros. "O ato de nomear não é apenas inserir um nome, mas, sim, atribuir um sentido para si e no mundo. Então, de forma muito resumida, se fizermos um brevíssimo histórico dos termos usados para se referir à população negra no Brasil, iremos perceber que foi se transformando: caboclo, cafuso, mulato, moreno, pardo, preto, negro, afrodescendente, afro-brasileiro", elenca Lís.
Ela explica que o "termo afrodescendente surge no período de escravidão. No período colonial, o contato e a miscigenação dos povos africanos e brasileiros deu origem a essa nomenclatura, mas de forma a caracterizar os filhos e filhas de africanos presentes no Brasil. Já o termo afro-brasileiro vem sendo discutido como um termo que traz não apenas a memória dos negros escravizados da forma como ocorreu no Brasil, mas também no processo de se ver e ser visto como sujeito negro durante a história no País", diferencia a coordenadora do Neab/UFSCar.
Segundo ela, ainda vemos o surgimento ou a supressão de termos, mas esse movimento mostra que a população vem discutindo como se autodenominar: "Hoje a população negra está na continuidade desse debate, em que vemos em circulação termos como 'afro-brasileiro', 'negro' e 'preto', cada vez mais caminhamos por escolhas de termos que nos reafirmem enquanto sujeitos no mundo", detalha Lís.
Apesar de a população estar em constante construção sobre essas relações, Lís avalia que o efeito do racismo ainda é muito profundo. "É preciso que a população de forma geral esteja inserida no debate das questões raciais, não de forma superficial, mas comprometida com essas discussões. Assim conseguiremos ter condições, de forma conjunta, de ir cada vez mais combatendo essa estrutura racista para caminhar ao objetivo que queremos: uma sociedade mais justa com sujeitos que sabem quem são, sua história e onde querem chegar de forma digna e plena", completa Sarah Lís.
Lembrando a célebre frase da filósofa estadunidense Angela Davis, numa sociedade racista, "não basta não ser racista. É preciso ser antirracista".

Serviço
Racismo é crime. Em caso de emergência, acione a Polícia Militar pelo Disque 190. Se o crime já aconteceu, procure uma autoridade policial para registrar a ocorrência. Para mais orientações sobre o assunto, acesse a cartilha "Discriminação étnico-racial", do Ministério da Justiça e Cidadania, em https://bit.ly/cartilha-discriminação-etnico-racial.

Sobre a campanha "Discriminação não cabe na UFSCar"A campanha "Discriminação não cabe na UFSCar. Aprenda, ensine: Violência é crime" é uma estratégia para realizar um movimento educativo com a comunidade, a fim de que todas as pessoas possam perceber o quanto são violentas em suas atitudes cotidianas, mudando seu comportamento. Ela também tem o papel de mostrar que qualquer ato de violência é passível de investigação e punição perante a lei. 
"Somos uma comunidade humana e plural. Combater todos os tipos de violência é importante para garantir o convívio pacífico e, mais que isso, permitir com que as diferentes visões de mundo se encontrem e permitam, com isso, a construção de um conhecimento plural, diverso, elaborado a partir de diferentes pontos de vista, experiências e culturas. Não é possível viver em uma sociedade de paz sem combater todos os tipos de violência", afirma o Secretário Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (SAADE), Vinícius Nascimento.
No escopo da campanha, "queremos vestir os campi com cartazes, flyers, adesivos e promover diferentes tipos de ações educativas como rodas de conversa, diálogos e atividades culturais, tudo com o propósito de mitigar a violência, construir uma cultura da paz e promover a diversidade", destaca ele.
"Cada pessoa da comunidade UFSCar precisa se enxergar como um instrumento dessa transformação. A mudança exige o trabalho diário, a partir do diálogo franco e do forte engajamento de todas e todos", conclui Ana Beatriz de Oliveira, Reitora da Universidade.

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