Por mais avançados que estejam os estudos referentes aos átomos, ainda não há conclusões como eles estão de fato dispostos, especialmente quando se trata de ligas metálicas. As pesquisas mostram como os átomos estão, em média, organizados, mas não se sabe em detalhes como são as estruturas locais e o teor real de aleatoriedade de misturas metálicas. Esse foi um dos pontos de partida dos estudos que resultaram no artigo "Sobre a origem das intensidades difusas em padrões de difração de elétrons de cfc" (originalmente em Inglês "On the origin of diffuse intensities in fcc electron diffraction patterns"), publicado na renomada revista Nature e que tem o professor Francisco Gil Coury, do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência e Engenharia de Materiais (PPGCEM) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), como primeiro autor.
"Não se sabe se em diversos metais, como por exemplo em um aço inoxidável que possui ferro (Fe) e cromo (Cr), se ambos os elementos estão distribuídos de forma completamente aleatória na estrutura ou se existe uma certa preferência por pares Fe-Cr por exemplo, o nome disso é ordenamento de curto alcance. Nesse contexto, se acreditava poder usar uma técnica de microscopia eletrônica, a difração de elétrons, para se mostrar a presença de um certo tipo de arranjo atômico local que desvia da aleatoriedade do material. No nosso trabalho, mostramos que esse fenômeno que vinha sendo reportado na literatura desde a década de 50 era na verdade um artefato da medida experimental", explicou Coury, que trabalha com metalurgia, com foco em caracterização de materiais e, que desde a iniciação científica na graduação, tem contato com microscopia eletrônica.
Os estudos que resultaram no artigo começaram por volta de 2012, na época que Coury era aluno de iniciação científica e estava fazendo um estágio com bolsa nos Estados Unidos, sob supervisão do professor Michael Kaufman, que possui longa história de colaboração com diversos pesquisadores da UFSCar. "O aluno de doutorado na época, Cody Miller, estava trabalhando com ligas de Ni e já tinha percebido que esse fenômeno visto na difração de elétrons era um artefato, e tinha começado a trabalhar em uma explicação do que esse fenômeno de fato seria", relembrou. Miller terminou seu doutorado e esse assunto ficou esquecido por vários anos, revivido recentemente quando o tema de ordenamento de curto alcance começou a ser tratado no contexto das ligas de alta entropia, e muitos autores começaram a reportar esse artefato como a prova da existência desses arranjos locais. Nessa ocasião, em 2021, Coury encontrou Kaufman e começaram a trabalhar novamente no tema, que resultou na submissão do artigo no final de 2022.
Algumas conceituações são importantes. Os metais são materiais cristalinos, o que significa que os átomos irão se dispor sempre de ordem de longo alcance, isto é, irão se organizar seguindo uma certa ordem. Podemos pensar que os átomos se organizam como em mosaicos, em que uma vez que começamos a montar esse quebra-cabeça, sempre podemos dizer qual vai ser o formato da próxima peça. Diferentes metais terão diferentes estruturas cristalinas, por exemplo: um terá um mosaico de quadrados e o outro terá o mosaico de hexágonos. A estrutura CFC é uma das três estruturas mais importantes e comuns em metais, como são, por exemplo, do alumínio, de alguns aços, do níquel, do cobre, do ouro, da prata, entre outros.
Uma grande quantidade de experimentos foi feita no Laboratório de Caracterização Estrutural (LCE) da UFSCar, que conta com microscópios eletrônicos de última geração e possui diversos acessórios que estão presentes em poucos lugares no mundo e que foram fundamentais nesse trabalho.
A principal contribuição do artigo, segundo o professor da UFSCar, está em corrigir e redirecionar todos os esforços que estão sendo feitos na área de entendimento do efeito do ordenamento de curto alcance nas propriedades dos materiais. "A grande questão é que a existência ou não desse tipo de arranjo local até hoje foi majoritariamente desconsiderada em todos os processos produtivos. Agora, com avanço de diversas técnicas de simulação computacional, começou um questionamento sobre a existência desses arranjos, como controlá-los e seu impacto em propriedades dos materiais. Esse entendimento pode abrir novas janelas de aplicação para virtualmente todos os materiais metálicos existentes", explicou. A grande questão, ainda segundo Coury, é que detectar, quantificar e compreender o efeito em propriedades, principalmente em ligas como os aços inoxidáveis, ainda é um desafio muito grande.
Ainda não se sabe ao certo em quais propriedades a ordem de curto alcance pode ter impactos. Pesquisas bem recentes, incluindo um trabalho pioneiro do aluno de mestrado Vinícius Bacurau e do pesquisador de pós-doutorado Angelo Andreolli, ambos do PPGCEM da UFSCar, vem mostrando que os impactos em propriedades mecânicas são insignificantes, pelo menos nas composições estudadas por eles. Entretanto, em outras propriedades físicas, como capacidade calorífica, propriedades magnéticas, propriedades elétricas e dilatação térmica, existe um efeito significativo. Mais pesquisas na área vão de fato mostrar as áreas onde esse efeito pode ou não ter um impacto relevante e otimizar as propriedades de um material após novos tipos de processamento.
"Uma vez que sabemos que a difração de elétrons não pode ser usada para esse fim, existe um grande esforço internacional no sentido de se detectar novas formas de se provar a existência e quantificar a ordem de curto alcance em metais. Uma vez sendo possível quantificar a sua existência, começará um esforço no sentido de quantificar seu impacto em diversas propriedades", finalizou.
Além de Coury, também assinam o artigo (na ordem): Cody Muller, Los Alamos (EUA); Robert Field, Colorado School of Mines (EUA); e Michael Kaufman, também da Colorado School of Mines. O artigo completo pode ser conferido neste link: https://www.nature.com/
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17/12/2023 09H06