A fala do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), de que uma facção criminosa havia orientado voto no então
candidato a prefeito da capital Guilherme Boulos (PSOL) teve gravidade
suficiente para condená-lo por abuso de poder político e torná-lo inelegível
por oito anos, segundo especialistas em direito eleitoral ouvidos pela Folha de
S.Paulo.
A afirmação de Tarcísio feita enquanto a votação ainda
estava em curso, no domingo (27), também coloca sob risco a vitória de Ricardo
Nunes (MDB), que pode ter a diplomação como prefeito reeleito cassada pela
Justiça.
A declaração do governador foi dada em entrevista em colégio
onde foi votar. Ele estava ao lado de Nunes e Mello Araújo, vice do emedebista.
Tarcísio foi questionado por uma jornalista sobre a
violência em algumas campanhas. "A gente vem alertando sobre isso há muito
tempo. Nós fizemos um trabalho grande de inteligência. Então a gente pegou e
reforçou o policiamento nas grandes cidades onde está tendo segundo
turno", respondeu.
"Vamos aí ter muitas conversar com o Tribunal Regional
Eleitoral para ver os relatórios que mostram os locais que tiveram conexão com
o crime organizado", completou Tarcísio, antes de ser indagado sobre o que
aconteceu na capital.
"Houve interceptação de conversas e de orientações que
eram emanadas de presídios de uma facção criminosa orientando determinadas
pessoas de determinadas áreas a votarem em determinados candidatos."
O governador foi então questionado pela Folha sobre qual era
o candidato indicado pelo PCC em São Paulo, ao que Tarcísio respondeu:
"Boulos".
O TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo) disse
que não tem conhecimento de relatório de inteligência nem recebeu informação
oficial sobre o caso específico. A corte afirmou que soube do episódio pela
imprensa e disse "não se manifestaria sobre casos concretos que possa vir
a julgar."
Já a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo afirmou em
nota que "o Sistema de Inteligência da Polícia Militar interceptou a
circulação de mensagens atribuídas a uma facção criminosa determinando a
escolha de candidatos à prefeitura nos municípios de Sumaré, Santos e Capital.
A Polícia Civil investiga a origem das mensagens".
Informes de inteligência do governo do estado ligados à SAP
(Secretaria de Administração Penitenciária) começaram a circular no final de
semana. A Folha de S.Paulo obteve acesso a alguns deles.
Em linhas gerais, continham reproduções de bilhetes
apreendidos com detentos com orientações para voto deles ou de familiares em
Boulos.
Ainda no domingo a campanha de Boulos protocolou duas
medidas na Justiça Eleitoral.
A que pode ter consequências mais pesadas é tecnicamente
chamada de Aije (ação de investigação judicial eleitoral). O processo pode
levar à inelegibilidade de Tarcísio, Nunes e Mello Araújo por oito anos, além
da cassação do diploma da chapa do prefeito.
Essa ação está agora na Justiça Eleitoral de primeira
instância em São Paulo. A acusação é a de que a fala do governador configurou
abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação social.
Especialistas em direito eleitoral ouvidos pela Folha
afirmam que há elementos potenciais para levar à condenação de Tarcísio.
O advogado Fernando Neisser, professor de direito eleitoral
da FGV-SP, diz que a configuração do abuso de poder político independe da
veracidade do conteúdo ou da existência da orientação de voto.
Segundo Neisser, "crimes eleitorais são apurados pela
Polícia Federal, e não pela Polícia Civil, exatamente com o intuito de
distanciar isso do controle político mais local exercido por governadores, por
prefeitos, que têm uma capacidade muito maior de influenciar em tese as forças
policiais locais".
Para o professor da FGV, "não faz sentido
jurídico" que essas informações de inteligência tenham ficado represadas
no âmbito do governo do estado e muito menos que tenha sido levada ao público
sem outros elementos de prova no dia da votação, em um evento em que Tarcísio
falava como governador, com o adesivo de Nunes e ao lado do candidato que
apoiava.
"Numa avaliação estritamente jurídica, me parece que há
elementos muito contundentes para levar à condenação de ambos", diz.
Miguel Novaes, sócio do FRN Advogados, afirma que o
enquadramento em abuso de poder político e uso indevido dos meios de
comunicação tem base legal. "É um governador de estado, uma autoridade
política, fazendo uma declaração muito grave, para potencialmente desequilibrar
o pleito. Quem quer estar do mesmo lado que uma facção criminosa?",
afirma.
Vânia Aieta, professora da UERJ e coordenadora-geral da
Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), diz que a
possibilidade de os acusados serem condenados "não é uma aventura, porque
a ação proposta tem um marco teórico e normativo sério".
A eleitoralista considera que a fala teve um viés eleitoral,
para, "através da desinformação, esvaziar a campanha do Boulos". Para
ela, portanto, trata-se de um problema antes de tudo criminal.
De acordo com Volgane Carvalho, professor da Unifor (Universidade
de Fortaleza) e membro da Abradep, a declaração de Tarcísio pode levar à
cassação da chapa de Nunes.
"A jurisprudência do TSE e a própria legislação é muito
tranquila no sentido de que, mesmo que eu não tenha realizado nenhuma conduta
abusiva, se eu for beneficiário desta conduta abusiva, eu sofrerei seus
efeitos. Então, ainda que se diga que o prefeito Ricardo Nunes não falou nada,
ele foi beneficiado, abstratamente falando, pela conduta", afirma
Carvalho.
Advogados citaram como precedente o caso do ex-deputado
Fernando Francischini, cassado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) por
divulgar notícias falsas contra as urnas eletrônicas no dia da votação. Ele foi
condenado por uso indevido dos meios de comunicação, além de abuso de poder
político e de autoridade.
A outra medida jurídica protocolada pela defesa de Boulos
tem o nome técnico de notícia crime e foi apresentada ao TSE. O objetivo nesse
processo é fazer com que o Ministério Público Eleitoral peça a abertura de um
inquérito pela PF e posteriormente o órgão apresente uma ação judicial contra
Tarcísio e Nunes. O caso foi distribuído no TSE ao ministro Kassio Nunes
Marques.
Nessa frente, a defesa de Boulos sustenta que o crime
eleitoral foi o de "divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período
de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a
candidatos".
A pena neste caso é de detenção de dois meses a um ano ou
pagamento de multa, e não leva à inelegibilidade ou cassação.
POR FOLHAPRESS