Após o veto parcial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao projeto de lei do marco temporal da demarcação das terras indígenas, que seguiu a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar a tese inconstitucional, senadores abriram uma nova ofensiva para conseguir legislar sobre a delimitação de territórios dos povos originários. Na quarta-feira, 8, 30 senadores apresentaram uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), determinando que o Congresso passa dar a palavra final sobre homologação de reservas indígenas.
O texto determina que a demarcação de terras só poderá ser homologada a partir de uma aprovação pela Câmara e Senado. A proposta é uma resposta do Legislativo ao posicionamento contrário do Executivo e do Judiciário ao marco temporal.
Hoje, o Legislativo não interfere nas demarcações de terras. A lei que rege o processo data de 1996 e determina que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) deve contratar antropólogos para elaborar um estudo de identificação das áreas. Ao fim do processo de pesquisa, o pedido de criação dos territórios é analisado e aprovado pelo Ministério da Justiça e pela Presidência da República.
Caso a PEC seja aprovada, as terras que poderão ser futuramente homologadas precisarão de aprovação dos congressistas. Já as áreas que já foram homologadas mas ainda não se foram classificadas como reservas indígenas pelo governo federal precisarão ser ratificadas pelo Congresso.
“É da competência exclusiva do Congresso Nacional aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas. (...) As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”, diz a PEC.
A proposta também determina que a legislação atual, de 1996, poderá ser modificada futuramente por uma lei complementar de autoria do Legislativo, mas sem entrar em detalhes sobre quais poderiam ser essas alterações.
No texto da PEC, o senador Carlos Viana justifica que o Executivo atualmente demarca os territórios indígenas sem “nenhuma consulta ou consideração aos interesses e situações concretas dos Estados”, e que esse modelo “tem criado insuperáveis obstáculos aos entes da Federação”.
Dos 30 signatários da proposta, 27 votaram a favor do projeto de lei do marco temporal, que foi aprovado pelo Senado em 27 de setembro. Os senadores Izalci Lucas (PSDB-DF), Carlos Portinho (PL-RJ) e Luis Carlos Heinze (PP-RS) também assinam o texto, mas estavam ausentes na sessão que apreciou a proposta.
PEC surge após veto de Lula e decisão do STF contra o marco temporal
No último dia 20 de outubro, Lula vetou o principal ponto do projeto do marco temporal. Os artigos barrados estabelecem que os indígenas teriam direito somente às terras que estavam na posse deles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Também foi cortado pelo presidente um artigo que determinava que as áreas indígenas poderiam ser formadas por “terras devolutas da União discriminadas para essa finalidade” e “áreas particulares desapropriadas por interesse social”.
O Senado havia colocado em pauta nesta quinta-feira, 9, uma discussão para derrubar ou não o veto presidencial. Porém, o item foi retirado de última hora da agenda e deve ser apreciado após o feriado da Proclamação da República, no próximo dia 15.
O veto de Lula buscou seguir à decisão do STF que, seis dias antes da aprovação do PL do marco temporal, decidiu, por nove votos a dois, que a tese é inconstitucional por ferir o direito dos povos indígenas.
A decisão da Suprema Corte não impediu que o projeto do Congresso continuasse a tramitar, mas, na prática, abre uma possibilidade de que a lei seja derrubada pelo Tribunal caso seja apresentada uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contestando a nova lei.
Texto é resposta para a decisão do STF sobre marco temporal, diz autor da PEC
Ao Estadão, o senador Carlos Viana explicou que a sua PEC busca determinar que o direito de finalizar a criação de uma reserva indígena é o Congresso, e criticou a forma em que o governo Lula realiza os processos de demarcação de terras. “Nós não podemos ficar à mercê de política ideológica e partidária, é um assunto sério demais para ser tratado desta maneira”, afirmou.
Viana afirmou que a apresentação da PEC foi uma resposta dada a Suprema Corte por ter considerado inconstitucional a tese do marco temporal durante a apreciação do projeto de lei aprovado no Senado. “É uma demonstração de que nós congressistas precisamos nos posicionar com relação às nossas atribuições. Eu entendo que nós temos sido invadidos pelo Supremo Tribunal Federal em diversas áreas. As súmulas do Supremo hoje se tornaram novas leis”, disse o parlamentar.
O autor da PEC adiantou que a proposta já possui uma adesão dos senadores que apoiaram o marco temporal em setembro. Na votação do projeto de lei, 43 senadores votaram a favor da tese. Para uma emenda constitucional ser aprovada, é necessária a aprovação de 49 dos 81 parlamentares da Casa.
“Há uma boa vontade da maioria de aprovar essa PEC. Ela já chamou a atenção daqueles que defendem o marco temporal, e eu tenho recebido apoio da maioria deles. O governo não quer entrar nesse assunto porque naturalmente isso é parte dos grupos internos do PT. Mas, os senadores que convivem conosco sempre dizem que a gente precisa de uma definição”, afirmou.
Especialistas consideram que texto de Viana também pode ser barrado pelo STF
O texto da PEC de Viana não aborda o marco temporal, porém, especialistas acreditam que, mesmo sem tratar sobre a tese, a proposta pode ser considerada inconstitucional pelo STF caso seja aprovada. Assim como o marco, o texto busca alterar o artigo nº 231 da Constituição Federal, que foi considerada uma cláusula pétrea, ou seja, não pode ser alterada depois da promulgação da Carta Magna de 1988.
O doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) Emanuel Pessoa observa que, por mais que a proposta não imponha um limite de tempo como o marco temporal, a implementação de uma chancela do Congresso para o processo de demarcações de terra pode ser considerada como uma tentativa de se reduzir os direitos fundamentais dos indígenas.
“Emendas constitucionais podem ser consideradas inconstitucionais se contrariarem as regras ou os princípios do texto original. Da forma como o STF decidiu a questão do marco temporal, é muito provável que, se essa emenda constitucional for aprovada, o STF, quando provocado, declare a emenda inconstitucional”, disse.
Segundo a professora de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Tainah Sales, a proposta de emenda constitucional fere a “tradicionalidade e origem das terras dos povos indígenas” assim como o projeto do marco temporal. De acordo com a especialista, a falta de critérios objetivos para a aprovação e ratificação dos parlamentares na PEC pode contribuir para uma interpretação de inconstitucionalidade pela Suprema Corte.
“A PEC vai trazer uma insegurança jurídica a respeito dessa questão pela ausência de critérios objetivos para a aferição dessas ratificações, e vai deixar a cargo dos congressistas decidirem algo que é direito constituído dos povos indígenas, conforme a decisão do STF”, afirma Sales
por Gabriel de Sousa / ESTADÃO